Celebração de N. S. do Bonfim. Bourian, a Burrinha do Benim

O espetáculo da bourian, a festa popular mais tradicional entre os agudás, é uma adaptação da festa folclórica brasileira da burrinha, similar ao bumba-meu-boi, na qual uma burrinha desempenha o papel principal. Outros animais contracenam com ela, como o avestruz, o cachorro e o rato, além de personagens fantasiados com máscaras de leão, perereca, mascarados com rostos das mais diversas personagens,  etc. Os figurantes mais importantes, depois da burrinha, são os bonecos de mais de três metros de altura, semelhantes ao “Homem da Meia Noite” e a “Mulher do Meio Dia”, do carnaval do Recife, chamados de Ioiô ou Papa Giganta e de Iaiá ou Maman Giganta,1 e Mammywata, que representa a deusa do mar, equivalente a Iemanjá brasileira.

Uma “orquestra” de cerca de vinte músicos, com pequenos tambores, pandeiros, agogôs e outros instrumentos bem simples (embora alguns grupos já empreguem até a guitarra elétrica), assegura a música e os cantos enquanto os personagens fazem as suas evoluções. Canta-se em fom, gum e nagô, a língua mais utilizada pelos agudás, mas também em português, já um pouco adulterado. Cada personagem é chamado para a cena por uma canção específica, sendo o repertório completado por dois outros tipos de canções, denominadas marcha e samba, assim mesmo em português.

A animação, como se diz no Benim, fecha sempre a celebração do Bonfim, acontecendo depois do piquenique, que se segue ao desfile após a missa. O caráter profano da burrinha, que contrasta com as outras festas e danças tradicionais do Baixo-Benim ligadas ao culto dos vodus ou dos ancestrais, faz com que ela seja apresentada também por ocasião de festas e cerimônias em famílias “brasileiras” e não-“brasileiras”, como casamentos, batismos, aniversários, funerais, “liberações”2 etc.

Transmitida de geração em geração até os nossos dias, a bourian – na sua versão africana – talvez tenha perdido um pouco da sua força como polo de atração dos “brasileiros”, mas ela continua sempre a se constituir em uma referência maior de identidade social para os agudás.   No final dos anos 1990, encontravam-se grupos de bourian mais ou menos profissionalizados em várias cidades do Benim. Em Uidá existem dois: um ligado à família De Souza e a “Bourian dos Neves”, que é uma dissidência do primeiro.3

Em Cotonu, nessa mesma época, existeiam seis ou sete grupos4, sendo o mais antigo a “Société Bourian de Cotonou – Aïdjédo”, conhecido como o “grupo D’Almeida de Cotonou”.  Outro grupo importante na capital econômica do Benim é a Association Brésilienne de Cotonou, que se reúne na casa da família Lawson. Os grupos geralmente fazem seus ensaios nas tardes de domingo, quando se canta e se dança de maneira informal e descontraída, onde as crianças acabam por aprender as canções e principalmente a dançar o “samba”, que é muito diferente das danças tradicionais do país, tanto no ritmo quanto nos movimentos.

Embora haja grupos de bourian nas principais cidades do sul do Benim, e até em Bohicon, próximo à Abomé, é em Porto Novo que o movimento é mais forte. Lá existiam, na década de 1990, a Association des Ressortissants Brésiliens – Bourian, que se reúne na casa da família Amaral, e o grupo Étoile d’Honneur, organizado por Aurélien Gonzalo e orientado por Joseph Gbédji.

A Association des Ressortissants Brésiliens - Bourian é a herdeira direta da tradição da festa em Porto Novo, na medida em que seus integrantes são provenientes das famílias que sempre praticaram este folguedo. Eles se formaram sob a influência de Casimir e Marcelino d’Almeida, no contexto social mais sólido da Irmandade Brasileira Bom Jesus do Bonfim de Porto Novo.    O grande momento para este grupo é a apresentação na celebração de N. S. do Bonfim, quando eles se encarregam inteiramente da organização da festa.

O espetáculo da bourian, no contexto das cerimônias do Bonfim em 1995 e 1996, se deu no terreno da Escola Pública Central, no bairro “brasileiro” de Oganlá5. A apresentação começou, como dissemos, depois do piquenique. O grupo de músicos, cerca de vinte homens e mulheres, tocavam pandeiros – designados assim mesmo, em português correto – tabuinhas que se batem uma na outra, chamadas “atewo’ em nagô, ou simplesmente marcavam o ritmo com palmas6. Adolphe Amaral e Antoinette Campos introduziam as canções, e cada verso era em seguida cantado por todos os músicos, em português perfeitamente inteligível:

A Bourian está na rua
Venha ver, venha gostar (bis)
É de saia
Saia brasileira
Vem à rua
Pra dançar
Até você, Yaya
Até você Yaya, Yoyo (bis)

Algumas pessoas se apresentam para dançar o “samba” com uma estola sobre os ombros, cuja ponta é segura pela mão diante do corpo. Elas fazem uma reverência para os músicos, e dançam o “samba”. Recebem muitos aplausos do público e são estimuladas por gritos de “bravo Iaiá”, “bravo Ioiô”.

O primeiro personagem a entrar em cena é o “leão”, que atua como mestre de cerimônia e anuncia a entrada de Ioiô, chamado à cena pela sua canção específica. Ioiô faz uma reverência aos músicos e cumprimenta o público, depois começa a dançar graciosamente, rodopiando sem parar.

Ele fica pouco tempo em cena, e cede o lugar para o “elefante”.  O “elefante”, acompanhado pelo “rato” e pelo “cachorro”, finge atacar o público para parar de repente e “parir” um menino vestido de “Zorro”, para delírio do público.

Há um momento de suspense porque a “burrinha” vai finalmente aparecer, chamada pela sua canção específica. Cavalgada por sorridente “Chirac”, ela obedece ao mesmo ritual de cumprimentos aos músicos e ao público e dança acompanhada pelo “leão” e pelo “sapo, antes de deixar a cena para Iaiá e Ioiô, que chegam juntos e são muito aplaudidos. Eles dançam rodopiando e fazem muitas reverências ao público.

Ao fim da apresentação, os participantes “brasileiros” da festa do Bonfim e o público em geral invadem o terreno e dançam cada um na sua maneira, como num verdadeiro baile popular bastante próximo ao carnaval brasileiro. Os músicos, como que para marcar ainda mais a identidade da festa, insistem na canção principal do desfile da véspera: “Nós já saímos / faz muito tempo / a sociedade brasileira está na rua / o brinquedo é delicado / para quem, para quem gosta de ver.” Mas o público só canta mesmo o trecho mais fácil, “até você, Iaiá / até você Iaiá, Ioiô!”

Em 2010, a celebração do Bonfim contou com apoio da embaixada brasileira no Benim, que deu um suporte financeiro e mandou produzir camisetas para os participantes. A estrutura de festa foi a mesma de sempre, com fantasias mais elaboradas.


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  • Casa da família Amaral. Na parede, retrato de Edouard Amaral que chegou em Porto Novo em 1901.  - 13 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim

    Casa da família Amaral. Na parede, retrato de Edouard Amaral que chegou em Porto Novo em 1901. - 13 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim

  • Casa da família Amaral. Preparação para o desfile de véspera da missa de celebração do N. S. do Bonfim. Na faixa esta escrito "Association des Ressortissants Brésiliens - BOURIAN", corruptela de 'burrinha'. - 21 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim

    Casa da família Amaral. Preparação para o desfile de véspera da missa de celebração do N. S. do Bonfim. Na faixa esta escrito "Association des Ressortissants Brésiliens - BOURIAN", corruptela de 'burrinha'. - 21 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim

  • Um outro grupo importante de Cotonu é a Association Brésilienne de Cotonu. Músicos da burrinha com seus instrumentos tradicionas. No microfone, Sr. Lawson. - 18 de fevereiro de 1996 - Porto Novo, Benim

    Um outro grupo importante de Cotonu é a Association Brésilienne de Cotonu. Músicos da burrinha com seus instrumentos tradicionas. No microfone, Sr. Lawson. - 18 de fevereiro de 1996 - Porto Novo, Benim

  • Association Brésilienne de Cotonou, que  se reúne na casa da família Lawson. Músicos da bourian, tendo o Sr. Lawson no microfone. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

    Association Brésilienne de Cotonou, que se reúne na casa da família Lawson. Músicos da bourian, tendo o Sr. Lawson no microfone. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

  • Association Brésilienne de Cotonou, que  se reúne na casa da família Lawson. Músicos tocam as plaquinhas de madeira chamadas “atewo” em nagô, também utilizado no boi de matraca do Maranhão. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

    Association Brésilienne de Cotonou, que se reúne na casa da família Lawson. Músicos tocam as plaquinhas de madeira chamadas “atewo” em nagô, também utilizado no boi de matraca do Maranhão. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

  • A Association Brésilienne de Cotonu, como os outros de burrinha, faz seus ensaios nas tardes de domingo, quando se canta e dança de maneira informal e descontraída. Esses ensaios, realizados nos pátios internos das concessões familiares, constituem espaços de interação e de afirmação de identidade.
 
 - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

    A Association Brésilienne de Cotonu, como os outros de burrinha, faz seus ensaios nas tardes de domingo, quando se canta e dança de maneira informal e descontraída. Esses ensaios, realizados nos pátios internos das concessões familiares, constituem espaços de interação e de afirmação de identidade. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim