A família De Medeiros é uma das mais aristocráticas dentre os agudás do Benim, já que tem sua origem no casamento do fidalgo português Francisco José de Medeiros, filho do governador da Ilha da Madeira, com Francisca Sikè Kpève, filha caçula do poderoso Chachá de Souza, o vice-rei do Daomé em Uidá.1
Capitão e proprietário de navio, Francisco José se instalou em Gana, por volta de 1850, antes de se estabelecer em Aneho e, depois, em Aguê para fazer o tráfico de escravos e o comércio de óleo de palma. Casou-se então com uma princesa local,2 mãe de sua filha Charlotte, futura Sra. Costa Soares, outra família agudá ilustre. Ele possuía, segundo as fontes de Turner,3 uma enorme plantação de dendezeiros para produção de óleo em Aguê, onde trabalhavam inúmeros escravos, aos quais, aliás, ele permitiu que usassem o seu sobrenome. Estes são a origem do ramo De Medeiros de Aguê, o qual se encontra perfeitamente integrado à família, o que nem sempre é o caso em todas as famílias agudás.
Era a época em que o tráfico de escravos para Cuba e os Estados Unidos ainda era possível,4 e Francisco José, que falava bem inglês, tornou-se o principal fornecedor de escravos e de óleo de palma para o mercado americano,5 o que deu-lhe meios para desembarcar em Uidá e desenvolver suas atividades em estreita colaboração com a família De Souza. Casa-se com a filha caçula de Dom Francisco Félix de Souza, Francisca “Sikè Kpèvi”, com quem teve três filhos: Leopoldo (1863), Cândida (1865) e Cesário (1867).6
Ao observarmos os retratos de Francisca e de seus filhos, verificamos que se apresentam como pessoas abastadas, seguindo à risca os códigos de representação da elite brasileira e da burguesia francesa de então. Como não há registro de uma viagem de Francisca com os filhos à Europa é quase certo que a sua fotografia com Cesário tenha sido realizada na África. A comunidade agudá em 1873 – data em que, segundo consta, foi feita a foto, quando Cesário tinha cerca de cinco anos - era suficientemente próspera para justificar os custos de viagem de um fotógrafo. Esta imagem foi reproduzida em 1995 de uma ampliação relativamente recente do original retocado pelo autor, segundo a técnica da época. O simples fato de se fazer retratar, na África oitocentista, sentada em uma cadeira com o seu filho nos joelhos já demonstra um alto padrão de vida e uma concepção de vida social e de sua representação absolutamente europeias. Francisca apresenta-se fora dos padrões de representação das mulheres africanas, está de vestido, e não de pagne, tem os cabelos alisados, sem tranças ou panos enrolados à africana, mantém a cabeça desguarnecida de chapéu porque está em casa, ou seja, representa-se “como uma branca”. O pequeno Cesário, de pele bastante clara, veste-se como um menino rico da sociedade ocidental. Aliás, o próprio cenário da fotografia, pintado pelo autor, procura justamente dar a impressão de riqueza e de sobriedade burguesas.
Já as fotografias de Lepold e Cesário e a de Cândida com o marido e a filha, foram certamente produzidas na França, provavelmente nos primeiros anos do século XX. Seguem, aliás, os padrões de representação de si da burguesia culta da época. Vê-se, bem pelos trajes e pela postura, que são pessoas abastadas e sofisticadas, sintonizadas com a cultura europeia e não com a cultura africana da sua época.
Ao contrário de outros “brasileiros” que não puderam suportar a concorrência e todas as transformações impostas pela penetração colonial francesa, a família De Medeiros soube se conduzir neste período de incertezas. Cândida, filha de Francisco José e de Francisca de Souza, casou-se com um mestiço de Porto Novo, filho de francês, chamado Achile Beraud. Este comerciante tinha uma posição de destaque na cidade e foi encarregado pelo Coronel Dodds, comandante das tropas invasoras francesas, de organizar e comandar pessoalmente as forças do rei de Porto Novo na guerra contra Behanzan, rei do Daomé.
No entanto, um outro ramo da família, entretanto, pôs-se ao lado do rei do Daomé. Trata-se de Júlio de Medeiros, também filho do fundador da família, representante comercial da empresa alemã Goeldt, através da qual estabeleceu contatos com um certo Barth, agente suiço-alemão instalado em Lagos. Por intermédio deste, segundo Turner,7 ele forneceu ao rei Behanzan 800 fuzis e mais de 15.000 cartuchos de munição. Em 1891, em um dos momentos mais cruciais da guerra entre o reino fom e a França, ele teria conseguido fazer chegar aos exércitos africanos mais de 5.000 fuzis com a respectiva munição e dois canhões, transportados diretamente de Berlim a Abomé.
Uma vez terminada a guerra, com os franceses instalados no país e a família De Souza enfraquecida pelas suas relações com o rei de Abomé, coube a Jean de Medeiros, representante juntamente com os Srs. Lima e D’Almeida da maior companhia comercial africana de Uidá, fazer a mediação com os franceses. Ele organizou a grande recepção feita ao governador da Colônia quando de sua visita à Uidá em 1895 e estimulou a comunidade “brasileira” a declarar publicamente seu apoio à administração francesa. Considerado oficiosamente como um dos conselheiros do Sr. Coly, o Residente francês de então, ele se tornou uma espécie de porta-voz dos africanos junto ao poder colonial, e vice-versa.8
No entanto, os De Medeiros, como a maioria dos “brasileiros”, perderam muito da sua privilegiada posição comercial na medida em que os franceses iam organizando, a partir de Porto Novo, o que se tornaria em breve a colônia do Daomé. Eles conservaram, não obstante, uma certa importância social. O primeiro africano de expressão francesa a formar-se em medicina na França foi o Sr. Virgílio de Medeiros, bisneto do Chachá, filho de Leopoldo de Medeiros e Délia Olympio, da poderosa família agudá de Aguê. Após a independência da colônia do Daomé, em 1960, ele se tornou o primeiro africano a dirigir os serviços de saúde do país. Sua popularidade levou-o a se candidatar nas eleições presidenciais de 1965, não tendo obtido, entretanto, uma votação significativa. Seu fraco desempenho teria se dado, segundo ele próprio, pelo preconceito que foi objeto seu sobrenome de origem estrangeira e a cor de sua pele. 9
Foram os descendentes de Cesário de Medeiros, o caçula de Francisca Sikè Kpève, que formaram o ramo da família com maior visibilidade no país ao longo do século XX. Criada pela tia Cândida Béraud, que tinha uma filha, Clotilde, de mesma idade que ela, a primogênita do último casamento de Cesário, Francisca Berthe Djidpe de Medeiros, foi o membro da família com maior expressão social na segunda metade do século XX. Herdou da tia Cândida a principal panificadora de Porto Novo, e uma das mais belas edificações de Porto Novo, com a residência no sobrado e, no rés do chão, uma padaria que funcionou até o final do século passado.
Clotilde, filha de Cândida e Achilles, casou-se com o Victor Patterson, de origem nigeriana, tendo falecido sem lhe dar herdeiros. Victor, então, casou-se em segundas núpcias com Francisca, herdeira dos bens e das tradições dos De Medeiros, e teve com ela três filhos: Clotilde Chantal Béatrice e Estelle Carmen Candida, que vivem em Paris, e Achilles, que vive em Porto Novo com a mãe, viúva há muitos anos. A Sra. Patterson, como passou a ser conhecida, foi durante muitos anos a representante da Cruz Vermelha Internacional do país, o que lhe permitiu conhecer inúmeros países europeus e africanos, e teve intensa participação política, embora sem desempenhar qualquer mandato ou função direta na administração do Estado.
Mme Patterson é, a justo título, considerada um baluarte da cultura agudá e como tal se apresenta na fotografia onde aparece no salão de sua casa, em Porto Novo, em fevereiro de 1996. Ela se apresenta de vestido, feito de tecido africano, é verdade, mas não vestida em pagne, além de se pentear à europeia, sem tranças ou pano na cabeça. Pode-se constatar que a cor da sua pele é nitidamente mais clara do que a da população africana em geral, o que ocorre frequentemente entre os agudás.
O salão em que ela se encontra está dividido em dois ambientes: sala de visitas, visível na foto, e uma sala de jantar, escondida por um biombo, no fundo à esquerda da imagem. Na sala de visitas, cuja entrada se encontra à direita e as janelas à esquerda, ambas fora do quadro, há um tapete que delimita o lugar ocupado pelas poltronas dispostas em torno de uma mesa de centro. Esta mesa, coberta por uma toalha bordada, está decorada com um vaso de flores, colhidas por sinal no jardim da própria casa. Entre as poltronas, encontram-se ainda outras mesinhas como aquela que aparece em primeiro plano. Na parede à direita, em frente das poltronas, está exposto o retrato da Cândida de Medeiros, com seu marido e sua filha, todos elegantemente vestidos à europeia e dispostos na pose consagrada à representação da família burguesa no começo do século, como já comentamos. Esta ampliação em preto-e-branco, em formato 40x50cm, foi feita em Paris na década de 1920 e, no entanto, se encontra em perfeito estado, o que atesta sua alta qualidade. Atrás da Sra. Patterson na foto, pode-se ver o retrato de seu finado marido em paletó e gravata, disposto sobre um pequeno móvel, onde se encontra outro vaso de flores. A organização rigorosa deste espaço doméstico traduz a maneira como é utilizado, um exemplo de “maneiras de branco” em uma sociedade africana.
Sra. Francisca de Medeiros, filha caçula de Francisco F. De Souza,o Chacá I, com seu filho Cesário no colo. Reprodução de foto original 30x40cm, com retoque de época (álbum da família Sra. Patterson). - c.1873
Leopoldo e Cesário Medeiros (álbum de família da Sra. Patterson) - s/d
Cândida de Medeiros com seu esposo Achilles Beraud e a filha Clotilde (álbum de família da sra. Francisca Patterson). - s/d
Achille Berraud e Candida (álbum de família da sra. Francisca Patterson). - s/d
Conselho paroquial da Catedral de Porto Novo constituído exclusivamente de “brasileiros". Casimir d’Almeida, presidente da Irmandade Brasileira Bom Jesus do Bonfim de Porto Novo, é o ultimo à esquerda (álbum de família da Sra. Francisca Patterson). - c. 1930
Sra. Bennoît d’Assumption, née Amorim (álbum de família da sra. Francisca Patterson). - c. 1920