Família Domingos José Martins

Filho natural do importante político e revolucionário Domingos José Martins,1 portador do mesmo nome que o pai, o fundador da família chegou na África em 1833, como membro da equipagem de um navio a serviço de Francisco Félix de Souza, o Chachá I.  O navio foi capturado pela marinha inglesa e Domingos, depois de uma temporada em Uidá, acabou se estabelecendo em Lagos, a sociedade “Dos Amigos” com a finalidade de suprir de escravos o mercado baiano, o que lhe rendeu, em muito pouco tempo, uma fortuna avaliada entre um e dois milhões de dólares (cf. Ross, 1965:79). Em 1844, Domingos voltou à Bahia para retornar à África dois anos mais tarde, onde ficou até o fim de seus dias, em 1864.

Na verdade, Domingos José Martins era o representante comercial do poderosíssimo banqueiro baiano Joaquim Pereira Marinho, um dos maiores financiadores do tráfico no Brasil, sócio fundador do Banco da Bahia e da Companhia de Estrada de Ferro de Juazeiro, tendo obtido sucessivamente da corte portuguesa os títulos de barão, visconde e conde.  As relações entre o banqueiro baiano e seu representante na África parecem ter sido bastante estreitas, tendo sido Pereira Marinho o tutor dos filhos de Domingos Martins e seu executor testamenteiro (Verger, 1968:452).

Uma vez de volta à África, Francisco Félix de Souza vive então seus últimos anos de vida e Martins o substitui como o maior negreiro da Costa e se dedica também ao comércio de óleo de palma, com grande sucesso em ambas as atividades. Grande importador de mercadorias da Bahia e da Inglaterra, ele se torna naturalmente o mais importante fornecedor do rei de Abomé. Reconhecido como “Cabeceira” 2 pelo rei, ele se impõe como seu principal conselheiro para assuntos relativos ao tráfico e ao comércio, desempenhando, por conseguinte, papel de primeiro plano na formulação da política daomeana face aos europeus a partir do fim dos anos quarenta.

Apesar de a família De Souza ainda conservar as funções honoríficas, além do cargo de Chachá, Domingos José Martins torna-se então incontestavelmente o verdadeiro líder da comunidade “brasileira”, como demonstra o fato de ter sido ostensivamente consultado pelo rei do Daomé quando da escolha dos Chachás II e III (cf. Ross, 1974:83; Souza, 1992:253 e Verger, 1953 a:40).

As louvações feitas a Domingos José Martins, misturando iorubá e fom, assim se referiam ao Cabeceira: 3 “ O homem agudá denominado ‘Signor’ / O homem que sozinho revolve a cidade com um elefante / O rico que faz furor / O homem branco que usa roupas, proprietário de bens e de tecidos imensos / O homem que esmaga os seus inimigos até na sua retirada / O homem poderoso que venceu Oió / O homem que dominou o oceano que envolve o mundo / O senhor que faz tremer seus adversários / O rei que desperta o ódio e o ciúme / O homem protegido por Deus que nada teme / O homem cujo espírito enfeitiça seus acompanhantes orgulhosos da sua fortuna / O senhor cuja influência provoca o suicídio dos inimigos / O rei contra quem todo mal fracassa.”

O rei Glelé, sucessor de Guêzo, não teve Domingos José Martins um dos pilares de sua política, tanto que, em 1864, a despeito deste, autoriza a França a se estabelecer comercialmente nesta cidade. Segundo os testemunhos da época, ele foi acometido de um tamanho acesso de cólera que morreu fulminado por uma apoplexia (cf. Ross, 1965:89; Souza, 1992:254 e Verger:1968:472).

Duas associações de família reivindicam o direito de representar os verdadeiros descendentes de Domingos José Martins: a A.F.D.J.M.B. – Association Familiale Domingos José Martins du Bénin, presidida pelo Sr. Bernard Martins; e a FA.D.MA.C.CO. - Collectivité Familiale Domingos José Martins du Bénin, presidida por Lucien Avyt Domingos.4 De um lado se encontra, portanto, a família Martins e de outro aqueles que têm o patronímico Domingo, recentemente transformado em Domingos. Existe ainda a família José, que se diz também descendente do Signor Domingos e parece aliada a família Domingos nesta querela em torno do direito de descendência do antigo Cabeceira.

Os Martins, por sua vez, afirmam que os Domingos são na verdade descendentes dos escravos do seu ancestral Argumentam que a residência dos Domingo em Uidá se encontra no local destinado aos escravos de D. J. Martins, e que a letra da louvação deles os define como pertencentes ao clã “Djeto”, enquanto que os Martins são do clã “Aweoumènou”,5 que reúne todos os brancos e os agudás em geral. O Sr. Domingos insiste igualmente sobre o fato de que na verdade eles todos pertencem ao clã “Aweoumènou”, e que a louvação da sua família comete um erro ao classificá-los entre os “Djeto”. Em apoio a seus argumentos, ele expõe na sala de sua casa um “retrato” de Domingos José Martins, que constitui uma verdadeira obra-prima de bricolagem da representação da identidade “brasileira”.

A representação de si é um dos pontos de apoio mais utilizados pelos agudás para estabelecer uma fronteira nítida em relação aos demais grupos étnicos do país. A maneira de se vestir e, consequentemente, a maneira de se apresentar constituem então um indicador de identidade importante. É neste contexto que o Sr. Domingos mandou fazer, a partir de um retrato do pai de Domingos José Martins,6 que tinha o mesmo nome do filho, uma representação fictícia do Cabeceira, que ele apresenta como sendo o retrato do fundador da família, aparentemente sem levar em conta os disparates da imagem, entre os quais o fato de que no começo do século XIX não se usava paletó e gravata nos moldes do que se vê no “retrato”.

A questão é delicada, envolvendo tanto interesses materiais quanto os mais variados sentimentos de amor próprio, tocando mesmo a inserção social das pessoas evolvidas. Na vida cotidiana, entretanto, os Martins e os Domingos são todos considerados “brasileiros”, se apresentam como tal e de maneira geral se dão muito bem uns com os outros. Eles estão lado a lado na organização da festa de N. S. do Bonfim em Porto Novo e em vários outros grupos de burrinha pelo país afora.


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  • Reprodução de um retrato a óleo de Domingos Jose Martins, que se encontra no salão da residência de Lucien A. Domingos, em Cotonu. Na legenda, pode-se ler “Fundador da família Domingos Martins da África” - s/d

    Reprodução de um retrato a óleo de Domingos Jose Martins, que se encontra no salão da residência de Lucien A. Domingos, em Cotonu. Na legenda, pode-se ler “Fundador da família Domingos Martins da África” - s/d

  • Conselho da família Domingos. O sr. Lucien Avyt Domingos, segundo à esquerda. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

    Conselho da família Domingos. O sr. Lucien Avyt Domingos, segundo à esquerda. - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

  • Sra. Josephine Abotoné Martins  - 1995 - Porto Novo, Benim

    Sra. Josephine Abotoné Martins - 1995 - Porto Novo, Benim

  • Sra. Josephine Abotoné Martins  - 1995 - Porto Novo, Benim

    Sra. Josephine Abotoné Martins - 1995 - Porto Novo, Benim

  • Conselho da família Domingos. Segundo à esquerda, Milton Guran e, ao seu lado esquerdo, sr. Lucien Avyt Domingos - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

    Conselho da família Domingos. Segundo à esquerda, Milton Guran e, ao seu lado esquerdo, sr. Lucien Avyt Domingos - fevereiro de 1996 - Cotonu, Benim

  • Domingos José Martins, fundador da família Martins, guardado pela família. - s/d

    Domingos José Martins, fundador da família Martins, guardado pela família. - s/d