Chachá VIII - Entronização em Uidá

A cerimônia da entronização de Honoré Feliciano Julião de Souza como Chachá VIII teve lugar em Singbomey no dia 7 de outubro de 1995, por ocasião da celebração do 241º aniversário do nascimento do fundador da dinastia.  Foi, sem sombra de dúvida, a maior manifestação pública de caráter étnico “brasileiro” jamais feita na República do Benim, afora a festa do Bonfim em Porto Novo.

Eis o programa dos eventos que marcaram a entronização e a investidura do oitavo Chachá:

“Sexta-feira 6 de outubro de 1996:
14:00hs-16:00hs: Reunião de toda a juventude em Singbomey
16:00hs-18:00hs: Carnaval (em volta de Singbomey – Forte Português Basílica – Forte Francês)
18:00hs-19:00hs: Refeição
19:00hs-20:00hs: Sessão de prece
20:00hs-23:00hs: Manifestações culturais (teatro – canto – Bourignan [sic])

Sábado 7 de outubro de 1995
07:00hs: Cerimônias de bênção efetuadas pelas tassinons
07:30hs Cantos e louvações aos ancestrais
08:00hs-08:30hs: Chegada e instalação dos convidados
09:00hs-10:00hs: Entronização e investidura de “Mitô”
10:15hs-12:00hs: Missa
12:00hs-13:00hs: Felicitações e oferendas ao novo Chachá: a) os membros do Conselho Supra-Nacional, b) as tassinons, c) delegação da juventude, d) convidados de honra, e) os notáveis. – Primeira visita do Chachá em torno de Singbomey acompanhado pelo Hougan e pelas amazonas (3 voltas) – Retorno a casa – Refrescos
13:00hs-14:45hs: Almoço
15:00hs-16:00hs: Intervenção de “Mitô” e seu recolhimento
16:00hs-17:00hs: Animações
17:30hs-19:00hs: Saída de “Mitô”
19:00hs-20:00hs: Recolhimento do “Mitô” (restauração)
20:45hs-22:00hs: Animação – Bourignan
23:00hs: Noite dançante

 

Domingo 8 de outubro de 1995
08:00hs-10:00hs: Tempo livre – visita a lugares turísticos
10:00hs-12:00hs: Missa do 241º aniversário de Dom Francisco Félix de Souza
12:30hs-13:00hs: Homenagem ao Chachá
13:00: Almoço em família”

O dia de trabalho do novo Chachá, na véspera da sua entronização, começou às 7 horas, com a investidura de um chefe de família do Quartier Brésil de Uidá. Cabe ao Chachá, efetivamente, cumprir o ritual de legitimação daqueles que são escolhidos como chefe pelas famílias de Uidá. Esta tradição é observada pelas famílias do Quartier Brésil e dos outros bairros que continuam sob a influência da família De Souza, como os de Adjido, Abata, Maro, Zomaí e Agbodji.1

Singbomey foi tomada por grande agitação desde a tarde de sexta-feira. Os primeiros convidados foram chegando e, cerca de 17:30hs, conforme o programa, começou um desfile carnavalesco onde se dançou muito e se cantaram canções da burrinha e também as louvações ao Chachá. Mais tarde, a noite foi animada pelos músicos da burrinha, que tocaram canções tradicionais, seus instrumentos de costume acrescidos de um acordeão para as pessoas dançarem o “samba”.

As cerimônias de 7 de outubro compreenderam duas partes, uma privada, à qual somente os notáveis da família puderam assistir, e uma outra dita “de grande público”, aberta ao conjunto da família e aos convidados, cerca de 1.500 no total. A parte privada deu-se na antiga casa de Dom Francisco, onde tiveram lugar, entre sete e oito horas, os rituais de bênção feitos pelas tassinons. A segunda parte durou o resto do dia e aconteceu no pátio da concessão,  com cerca de 30x40m, em grande parte coberto por um toldo.

 A valorização da sua condição de “brasileiros”, portadores de uma cultura própria, marcou cerimônia como um todo, de modo a destacar a especificidade e a originalidade da festa. Esta preocupação esteve evidente não somente na organização dos acontecimentos -  fizeram duas vezes um desfile de “carnaval”, uma festa tradicional em Porto Novo mas praticamente desconhecida em Uidá – como também por meio de outros aspectos como por exemplo as roupas usadas pelas pessoas da família e a escolha dos pratos na refeição familiar. De certa maneira, os De Souza fizeram uma demonstração pública e clara do pretendido papel do Chachá enquanto representante desta mistura de culturas africana e europeia cada vez mais dominante no Benim atual. Ao contrário dos outros chefes tradicionais – como os reis de Abomé ou de Quêto ou os chefes religiosos como o Daagbo Hounon – que representam apenas a cultura tradicional pura, o Chachá pretende simbolizar a “modernidade”, o que ele faz ao se reivindicar como estando na origem mesmo deste processo de modernização do país.

A parte privada das cerimônias de entronização de Honoré Feliciano Julião de Souza foi constituída por um ritual baseado nos antigos costumes familiares que marcavam a entronização de um Chachá. A cerimônia começou pela bênção do novo Chachá por doze tassinons, escolhidas entre o ramo Julião e seus associados, a saber, as Sras. Virgínia de Souza, Adjoa Sike de Souza, Martine de Souza, Afiavi Felicia de Souza, Henriette Leroux, Generosa de Souza  Sagbohan, Araoyte, Videroh, Rita J. A. de Souza, Henriette Agbo, Edwige Atakoui e Berthe Leroux, a mais idosa, que é a irmã mais velha de Honoré Feliciano. Este, vestido de smoking, como seu avô Julião, acompanhado dos membros do Conselho Supra-Nacional e de outros notáveis da família, primeiramente se instalou no salão ao lado do quarto onde Dom Francisco faleceu. À sua direita colocou-se Marcelin de Souza, o primogênito do Chachá VI, e do outro lado ficou Noël Feliciano de Souza, seu irmão mais velho. Foi neste salão, carregado, para a família, do mais alto valor simbólico já que constitui a antecâmara do túmulo do ancestral e o local onde são expostos os retratos de todos os Chachás, que as tassinons procederam ao ritual da bênção. Elas cantaram cantos católicos em fom e francês, além do “Veri Creator” em latim, antes de saudarem o Mitô levantando em sua direção a mão esquerda.

Às 7:30hs, as tassinons levam o Mitô para o quarto de Dom Francisco, onde se encontram seu túmulo com uma estátua de São Francisco e o leito no qual ele faleceu, segundo a tradição familiar.  Quando se homenageia desta maneira um ancestral e pede-se a sua proteção, deve-se lhe dar de comer e de beber. Mitô Honoré, acompanhado por Geoffroy de Souza, secretário-geral da Diretoria Executiva, coloca-se junto ao túmulo. As tassinons, Catherine dos Santos e Henriette Leroux de pé, Generosa de Souza e Berthe Leroux ajoelhadas, posicionam-se entre eles e fazem então as preces implorando ao ancestral para ajudar Honoré a assumir seu lugar como Chachá VIII.

Berthe Leroux derrama um pouco d’água pelo chão e faz suas preces em fom. A assistência acompanha repetindo seguidamente “Amém”. Ela repete o mesmo procedimento com as outras bebidas. Quando todo mundo tornou a se instalar no cômodo ao lado do quarto, as tassinons recomeçaram a entoar em fom as louvações do Chachá.

Já eram nove horas quando nos dirigimos todos, em cortejo, para o pódio instalado no pátio. À frente, caminhava uma tassinon levando uma grande chave sobre uma almofada, seguida por outras que levavam, também sobre almofadas, um pequeno bastão de marfim esculpido com um punho cerrado em uma das extremidades, um cetro  em madeira decorado com um elefante esculpido, uma pequena capa de veludo vermelho escuro e um boné tipo calota bordado em ouro semelhante àquele usado por Dom Francisco no seu retrato oficial. A seguir vinham, pela ordem, Marcelin de Souza, o Mitô, Noël Feliciano e as outras tassinons. O cortejo terminava por um grupo de mulheres do Quartier Brésil, vestidas de amazonas e armadas de picaretas.

A esta altura já havia várias centenas de pessoas aguardando no pátio e espalhadas por todo lado em Singbomey. Via-se uma grande parte da família usando roupas feitas com um tecido impresso especialmente para a ocasião. Sobre este tecido, sobressaía um retrato de Dom Francisco enquadrado por uma moldura que constituía a base de uma representação de árvore com sete ramos, cada um com o nome de um Chachá. Os homens usavam, na esmagadora maioria, paletó e gravata. Os convidados eram recebidos na entrada da concessão por duas alas de jovens encarregados de orientá-los rumo a seus respectivos lugares. Estes recepcionistas estavam cuidadosamente vestidos “à brasileira”.  As mulheres, sobretudo, se destacavam com seus vistosos vestidos longos, com chapéu, como as damas da sociedade brasileira do século XIX

Esta tradição agudá de se vestir à “brasileira” sempre foi, como vimos, um importante indicador de identidade .

No pátio, ao lado do altar montado para a missa, se encontrava o pódio sobre o qual tinha sido instalado um grande trono, ladeado por dois elefantes esculpidos em madeira de lei. O Chachá e seus acompanhantes subiram no pódio para cumprir o ritual de entronização. Conforme à tradição, cabe ao Vigan, Sr. Germain de Souza, colocar aquele que é escolhido pela família sobre o trono. Ele é auxiliado nesta tarefa por Marcelin e Noël. Eles o sentam e o levantam três vezes, antes que ele se instale definitivamente no trono. A decana das tassinons, Berthe Leroux, coloca então sobre a sua cabeça o boné semelhante ao de Dom Francisco. Marcelin lhe entrega a chave simbólica de Singbomey. E é Noël Feliciano quem passa às suas mãos o pequeno bastão em marfim que simboliza suas funções. Solenemente, ele declara: “Diante de Deus e em nome de Dom Francisco Félix de Souza, eu lhe entrego o ‘recade’ de comando da família De Souza.”

Na composição da imagem do Chachá que está sendo entronizado, pode-se reencontrar, no plano do visual, uma representação do papel que ele pretende desempenhar, como fizeram os seus predecessores. Ele busca se aproximar, na representação de si, ao mesmo tempo de Dom Francisco, com seu lado aventureiro, e de Julião, que se fez retratar vestido como um aristocrata europeu ou brasileiro da Belle Epoque. Desta forma, a família recupera simbolicamente, por meio da imagem dos seus chefes, suas origens e as raízes na história do Benim.

O Conselho Supra-Nacional se instalou atrás do trono, ao lado dos familiares mais próximos do Chachá. Duas jovens sobrinhas deste, gêmeas, com vestido longo e chapéu, colocaram-se uma de cada lado diante do trono, como damas de honra. Não se vêem “boubous” ou qualquer outra indumentária africana entre os membros do Conselho.

Seis agentes de segurança, pertencentes a uma agência privada, em uniforme de gala e munidos de grandes cassetetes de madeira, montam guarda dos dois lados do trono, enquanto que os membros da família e as personalidades presentes vêm para saudar o Mitô. Tem precedência o cônsul honorário do Brasil, Sr. Karin Urbain da Silva, vestido a caráter com cartola e tudo, vem amarrar solenemente na cintura do Mitô uma faixa vede e amarela, e o cumprimenta com um aperto de mão.

O Daagbo  Hounon, chefe supremo dos cultos vodus e sem dúvida a personalidade mais importante de Uidá, é também convidado a saudar o Chachá. Ele se apresenta e diz: “Estamos muitos felizes de vê-lo com saúde. Todas as divindades olharão por ele, os ancestrais da família também.” E, dirigindo-se diretamente ao Mitô, acrescenta: “Tudo o que tu dirás será ouvido e respeitado por todo mundo....” Ele é então vivamente aclamado e podemos ouvir incontáveis vozes bradando: “Obrigado, Daagbo”.

Após os cumprimentos das outras personalidades, Geoffroy de Souza faz, durante dez minutos, uma retrospectiva histórica das origens da família. Logo depois é a vez das amazonas se apresentam, dizendo: “Tu não te arrependerás jamais de tua escolha. O mundo olhará por ti. Nossa Senhora das Vitórias olhará por ti, o Sagrado Coração cuidará de ti, Santo Antônio de Pádua cuidará de ti. Tu nos dirigirás.” Um dos netos do novo Chachá toma então a palavra e faz um breve discurso, que termina por estas palavras: “Eu te dou o meu amor, para que ninguém atravanque o caminho do nosso Mitô...”

Com apenas um quarto de hora de atraso em relação ao programa, ou seja, às 10:30hs, começa a missa solene celebrada pelos dois bispos da família presentes – há ainda um terceiro, Dom Agbotan, que não pode vir – secundados por oito padres, todos de pai ou de mãe De Souza. Depois da comunhão, marcada por 21 tiros de canhão, todos os padres, com Dom Sastre à frente, foram saudar o Chachá. Incensaram-no e aspergiram água benta sobre seu “recade” e seu cetro. Antes de partirem, os dois bispos, com todos os seus paramentos e portando as mitras, benzeram solenemente o Chachá, recitando fórmulas em latim.

Segundo a tradição, o Mitô deveria realmente ter dado três voltas em torno da concessão familiar, carregado em uma rede, mas isto se revelou impossível.  Devido ao forte calor, ele deu uma volta apenas que, entretanto, durou quase uma hora e foi sem dúvida apoteótica. Uma multidão dançava e cantava como se tratasse de um verdadeiro carnaval de rua no Brasil.

Atrás de uma faixa onde se podia ler “Glória eterna ao nosso ancestral Dom Francisco Félix de Souza”, centenas de pessoas, entre as quais muitas fantasiadas ou mascaradas, misturavam-se aos personagens da burrinha como o Papá Giganta, cantando e dançando ao som de uma grande fanfarra. Todo mundo gritava a plenos pulmões as louvações de Dom Francisco, não somente em volta de Singbomey, mas, depois da partida do Mitô, pelas ruas do centro de Uidá .

O Chachá vinha no fim do cortejo, precedido por duas alas de mulheres vestidas à “brasileira”. Depois delas vinham as amazonas e o tambor real Hougan, o exemplar original doado pelo rei Guêzo a Dom Francisco há mais de século e meio. O sucessor do vice-rei de Uidá fechava então o desfile, instalado em uma viatura com teto aberto de uma empresa particular de segurança, de onde acenava para a assistência, protegido permanentemente por guarda-costas armados de cassetetes. Atrás desta viatura, empregados levavam o grande pára-sol com os símbolos dos reis de Abomé, a marca do seu status.

Uma boa parte dos participantes da cerimônia ficou para o almoço em Singbomey, depois do desfile. Oito bois forneceram a carne para a “feijoada” e os outros pratos da cozinha africana. As pessoas reuniram-se em grupos segundo os laços familiares ou afinidades pessoais, em volta de cozinhas improvisadas por toda a concessão e nas diversas casas lá existentes.

No final da tarde, a atividade cultural foi reativada, semelhante à da véspera. A festa noturna começou com a apresentação da Bourignan e terminou com um baile de “samba”, que foi até as cinco horas da manhã. Como foi finalmente cancelada a única atividade oficial programada para o dia seguinte – a missa do 241º aniversário de nascimento do fundador da dinastia – as manifestações que marcaram a entronização e a investidura do oitavo Chachá se encerraram mesmo com um baile de “samba”.


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  • Mitô Honoré Feliciano Julião de Souza, o Chachá VIII, diante do seu trono, com o cetro que simboliza o seu poder. Este traz no punho a representação de um elefante, símbolo do Chachá, que está reproduzido nas duas esculturas em madeira ao lado do trono. Duas jovens da família, a carater, colocaram-se uma de cada lado diante do trono, como damas de honra. Elas foram escolhidas porque são gêmeas, o que significa muito para os africanos. - 7 de outubro de 1995 - Singbomey, Uidá, Benim

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  • Cerimônia pública de entronização do Chachá VIII - 7 de outubro de 1995 - Singbomey, Uidá, Benim

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  • Os membros da família fizem fila para beijar a mão do Chachá VIII. - 7 de outubro de 1995 - Singbomey, Uidá, Benim

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